quarta-feira, 25 de agosto de 2010

Moderna vida mixofóbica

"Há coisas que os arquitetos e urbanistas podem fazer para que a balança entre mixofobia e mixofilia possa em favor desta última (tal como, por ação ou omissão, eles contribuem no sentido oposto). Mas há limites ao que podem conseguir agindo sozinhos e baseando-se unicamente nos efeitos de suas próprias ações.
As raízes da mixofobia - aquela sensibilidade alérgica e febril aos estranhos e ao desconhecido - jazem além do alcance da competência arquitetônica ou urbanística. Estão profundamente fincadas na condição existencial dos homens e mulheres contemporâneos, nascidos e criados no mundo fluido, desregulamentado e individualizado da mudança acelerada e difusa. Não importa que significado possam ter, para a qualidade da vida diária, a forma, a aparência e a atmosfera das ruas das cidades, assim como o uso que se faz dos espaços urbanos - esses são apenas alguns dos fatores (e não necessariamente os principais) que contribuem para aquela condição desestabilizadora que gera incerteza e ansiedade.
Mais que qualquer outra coisa, os sentimentos mixofóbicos são estimulados e alimentados por uma sensação de insegurança esmagadora. Homens e mulheres inseguros, incertos de seu lugar no mundo, de suas perspectivas de vida e dos efeitos de suas próprias ações, são mais vulneráveis à tentação mixofóbica e mais propensos a caírem em sua armadilha. Esta consiste em canalizar a ansiedade para longe de suas verdadeiras raízes e descarregá-la sobre alvos que não se relacionam às suas fontes . Como resultado, muitos seres humanos são vitimizados (e no longo prazo os vitimizadores atraem, por sua vez, a vitimização), enquanto as fontes da angústia permanecem protegidas da interferência, emergindo sãs e salvas dessa operação.
A consequência é os problemas que aflingem as cidades contemporâneas não podem ser resolvidos reformando-se os próprios centros urbanos, por mais radical que sejam a reforma. Não há, permitam-me repetir, soluções locais para problemas gerados globalmente. O tipo de "segurança" oferecido pelos urbanistas não pode aliviar, muito menos erradicar, a insegurança existencial reabastecida diariamente pela fluidez dos mercados de trabalho, pela fragilidade do valor atribuído a habilidades e competências do passado ou que busca adquirir no presente, pela reconhecida vulnerabilidade dos compromissos e parceirias. As reformas urbanas devem ser precedidas de uma reforma das condições de existência, já que estas determinam o sucesso daquelas. Sem essa reforma, confinados à cidade, os esforços para sobrepujar ou desintoxicar as pressões mixofóbicas tendem a continuar sendo apenas paliativos - com muita frequência, tão somente placebos.
Isso deve ser lembrado não para desvalorizar ou reduzir a diferença entre a boa e a má arquitetura, ou entre planejamento urbano adequado e inadequado (ambos podem ser, e frequentemente são, de enorme importância para a qualidade de vida dos habitantes das cidades), mas para colocar a tarefa numa perspectiva que inclua todos os fatores decisivos a fim de se fazer e sustentar a escolha certa."

Bauman, Zygmunt. Amor Líquido - Sobre a fragilidade dos laços humanos. Rio de Janeiro.,Ed. Jorge Zahar, 2004.

Um comentário:

  1. Não é à toa que hoje os problemas de saúde que mais afetam a população são os psiquiátricos e cardiovasculares.

    Engraçado como tudo se sabe, tudo se imagina uma solução, mas tudo continua na mesma :/

    Muito bom Mila. xD

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