José Alencar
ex-vice presidente da República.
Umas das perguntas mais feitas pela humanidade: "Quem somos nós?". Mas aqui não quero filosofar sobre isso, onde quero chegar não é numa quimera sobre o que direciona nossa existência no planeta. A pergunta sobre 'nós' que quero fazer é: "Como somos reconhecidos?".
Pensando muito sobre o assunto, vi que muitas vezes para ser reconhecido socialmente você deve às vezes não dizer quem você realmente é, mas usar de uma arte para fins populares. Por exemplo, na Universidade sou reconhecida pelo Pseudônimo de "Senadora" (não só pelos colegas, mas por alguns professores também) ou simplesmente "Mila". Será que se fosse apenas Camila seria reconhecida do mesmo modo?
Na cidade do interior onde nasci e vivi boa parte da minha vida não sou conhecida simplesmente como Camila, Mila, Senadora ou qualquer outro nome. Uma das relações de reconhecimento pessoal que mais se fazem nesses lugares é que você nunca é "você de si próprio" é sempre reconhecido como sendo de alguém ou de algum lugar. Uma marca característica das relações pessoais daquele lugar, que mesmo insistindo em nunca mudar, me deixa um pouco constrangida ao falar em referências de outras pessoas fazendo parecer que você sempre é aquele objeto que pertence a determinada pessoa ou lugar.
Lembro que um dia incomodada com essa situação me queixei desse tipo de tratamento de reconhecimento e meu pai disse o seguinte:
- Não reclame! Você é Camila, de Chico, de Antônio, de João do Treme!
4 gerações familiares para identificar uma pessoa, é um pouco demais?!
Vim morar na capital (Natal/RN) e conhecendo pessoas no cursinho pré-vestibular começamos a descobrir características de identificação entre uns e outros. Era Mila de Caicó, Diego de Grossos, Thaíza de Pedro Avelino, Rafael de Quixadá, Hugo de Santa Cruz, Daniel de Japí. Isso sem contar nas vezes que éramos chamados pelos lugares de origem, o que sempre ocorria de vir acompanhado de algumas piadas pelo fato de sermos todos interioranos.
Isso é pensar até que perdemos um pouco de nossa identidade para sermos não somente nós mesmos por sermos próprios, mas sempre seremos o "eu" com alguma referência. É a pessoa pertencendo sempre a lugar ou alguém como referencia para sempre sabermos quem somos na verdade.
A gente vive falando que não tem preconceito, e quando se fala em racismo se pensa logo no preto. Mas o branco também leva nessa história, apesar de ser com menos intensidade, mas a vida urbana que eu tanto admiro me deixa sempre com aquela desconfiança onde um dos principais elementos das relações e interações sociais é não estabelecer contato com o que lhe é estranho.
O estranhamento antropológico, necessário, porém sem doses de etnocentrismo, ocorre facilmente na vida nossa, e eu como uma aspirante das ciências humanas mais que tudo pondero a estudar até minhas atitudes.
O estranho nos causa medo, não aquele pavor ou pânico, mas um medo desconfiante que faz com que as pessoas andem umas para as outras de cara amarradas, sem cordialidade. Eu, essa blogueira que vós escreveis, pregadora do pacifismo entre as pessoas não deixo que aconteça uma cordialidade muitas vezes, o que já me rendeu títulos de antipatia como o famoso "monossílabo¹ doce".
Hoje (13/03) logo após o almoço peguei o carro e fui até o supermercado mais próximo colocar crédito no meu celular (que tem que ser assim para que haja um controle financeiro). Estacionei do lado de fora mesmo do estabelecimento que tem um estacionamento bem apertado por sinal, juntei minhas coisas cautelosamente e sai fingindo que não ouvia os gritos atrás de mim.
- Ôh, doutora!
Olhei de relance e lá estava um homem que deveria ter seus quase 40 anos (ou talvez tivesse menos, já que a 'vida' que aquele sujeito levasse deveria ser bem ruim pelo fator de provavelmente viver pelas ruas). Estava sujo, trajava só uma bermuda também suja, e andava descalço. O tom da pele escura não era do fator solar, mas uma tendência da raça humana que tem sua maioria voltada às más condições de vida graças ao nosso sistema excludente socialmente. E talvez o fato de eu chegar num carro fechado pelo ar-condicionado, com roupas de marca e uma postura ereta o fez pensar que seria meu subordinado. Mal sabe ele que fazer aquilo, tratando-me como sua superior, o faz classificá-lo numa escala social onde a tendência é que os homens se tratem de modo mais vertical o possível.
- Ôh, doutora!
Continuou chamando, mas meus passos rápidos e o medo daquele estranho não me deixaram ouvi-lo. Eu que nem tenho um doutorado me tornei "doutora" no ponto de vista daquele homem que eu tinha visto sair do nada! Entrei no supermercado e fiquei pensando se havia me seguido se estaria colado no carro quando eu voltasse, e o pior de tudo pensei no medo. No medo que temos uns dos outros como seres humanos, no medo se aquele ser poderia me fazer algum mal. Fiz o que tinha que fazer e voltei para o carro no mesmo passo que tinha ido ao supermercado, dessa vez sem avistá-lo. Entrei depressa, engatei a ré, a primeira, a segunda e a terceira marcha saindo dali, tanta pressa que me fez esquecer de botar o cinto de segurança, mas pressa pouca, só para fugir daquele chamado de doutora. Tanta pressa para nada parei no sinal a poucos metros de onde tinha saído, coloquei o sinto, olhei pelo retrovisor. Tivesse a impressão de ver o sujeito de antes vir atrás do carro, que nada. Parou antes e recebeu dinheiro de alguém.
Medo estúpido, preconceito tolo. Era só mais um guardador de carros, mendigando qualquer coisa por uma ajuda. Onde estaria nesse momento toda a cordialidade do meu discurso? Só nas teorias agora, já que na prática, o medo do mal do que me é estranho, não deixou que eu exercesse.
¹Adjetivo polular de nominar pessoas antipáticas: "Cu-doce"